quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Saudades de Deus

Vi uma frase da Clarice Lispector aqui no blog Os Gargantas de Fogo, na seção Bem Dito, que me lembrou de uma cena inusitada que presenciei há muitos, muitos anos: “Estou com tanta saudade de Deus.”

Estudei boa parte da minha infância no Sacré-Coeur de Marie, um colégio dirigido por freiras na Rua Toneleros, em Copacabana. As freiras eram bem rígidas, acho que até demais. Não tenho lá boas recordações delas. Lembro-me de broncas, caras enfezadas, alguns puxões pelo braço — eu sei, eu não era bem um santinho.A cena aconteceu justamente com uma dessas freiras. Por respeito, vou emitir seu nome, mesmo ela não estando mais entre nós. Podemos chamá-la de Maria.

Irmã Maria era uma das mais rígidas freiras do colégio. Era carrancuda mesmo. Só me lembro dela distribuindo broncas por todos os lados. E nunca, nunca, nunca mesmo, eu a vi sorrir. Acontece que irmã Maria já estava bem, bem velhinha. E começou a ficar gagá. Já não lembrava das coisas, dos nomes das pessoas, etc. Às vezes, nós a víamos pelos corredores andando sozinha, como que perdida — na verdade, acho que ela realmente estava.

Esses, digamos, passeios tornaram-se freqüentes. E, em muitos deles, ela estava choramingando — no sentido de “chorar baixinho, sem lágrimas”. Era superestranho. Acho que ela escapava de seus aposentos, sem que as freiras que cuidavam dela percebessem, e ia caminhando e choramingando pelos corredores.

Certa vez, uma aluna, já uma pré-adolescente pelo que me lembro, foi até ela e perguntou por que ela chorava.

“Saudades de Deus”, respondeu. Essa tornou-se sua resposta padrão. “Saudades de Deus”, repetia sempre.

Não quero parecer maldoso, mas sempre achei que aquela freira estava bem longe de Deus mesmo.